Por Mozart Neves Ramos, conselheiro do Instituto Ayrton Senna
O título deste artigo é inspirado no do filme Até o último homem, dirigido por Mel Gibson, cujo roteiro se baseia numa história real que se passou durante a Segunda Guerra Mundial. O personagem central, o jovem Desmond Doss – um rapaz muito gentil, seguidor da religião cristã –, vive numa cidade do interior da Virgínia, nos Estados Unidos. Doss decide se alistar no Exército americano para atuar como médico de combate, e se destaca dos demais por se recusar a usar uma arma e matar pessoas. Ele alega que o único motivo pelo qual se alistou no Exército foi para salvar vidas, e não para tirá-las.
Isso o fez passar por muitos constrangimentos até chegar ao campo de batalha. Mas ele acreditava que Deus estava ao seu lado. Assim, na Batalha de Okinawa, uma das mais sangrentas da história, sozinho e desarmado, ele salva e resgata a vida de 75 soldados gravemente feridos. O soldado Doss entendia que não podia deixar nenhum homem para trás, à sua própria sorte, prestes a morrer em um campo de batalha. Ele não desistia nunca, por mais adversa que fosse a situação.
Ao ver esse filme, lembrei-me muito de uma preocupação permanente e obstinada de um grande educador brasileiro – Chico Soares, como gosta de ser chamado. Tenho o privilégio de tê-lo como colega no Conselho Nacional de Educação (CNE), e ele nunca se cansa de dizer: “Não basta um determinado município ou estado ter um Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) alto, caso ele não inclua todas as crianças e todos os jovens”. Ele repete com frequência para todos nós, conselheiros, a sua preocupação com o fato de o Ideb, apesar da inegável importância de medir a qualidade do ensino oferecido, não levar em conta as crianças e os jovens que estão fora da escola. Não adianta ter qualidade apenas para alguns ou até para muitos, se não for para todos.
Segundo levantamento feito pelo movimento Todos Pela Educação com base nos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), o Brasil tem cerca de 2,5 milhões de crianças e jovens de 4 a 17 anos fora da escola. O montante representa cerca de 6% do universo total de alunos, cujo futuro pode estar absolutamente comprometido se nada fizermos.
As crianças mais pobres são as que estão mais afastadas da estrutura escolar. Entre as famílias cuja renda per capita é de mais de cinco salários mínimos, 5,5% das crianças de 4 a 6 anos estão fora da escola. Já entre as que têm renda de até um quarto de salário mínimo per capita, o índice salta para 30%. Para começar a reverter esse quadro de exclusão – que responde em grande parte pela desigualdade vigente em nosso país –, é preciso assegurar que todas as crianças estejam matriculadas na pré-escola e sejam alfabetizadas até os 7 anos de idade, pois aí está a pedra angular de todo o processo educacional.
Mas, obviamente, é preciso muito mais. É necessário dar condições para que essas crianças progridam nos estudos, oferecendo-lhes, sempre que possível, escolas de tempo integral com educação integral, de forma que elas possam se desenvolver plenamente. A educação integral requer que a escola desenvolva de forma intencional no currículo escolar as novas competências e habilidades necessárias para se viver no século XXI, tais como amabilidade, resiliência, criatividade, pensamento crítico e comunicação, entre outras. Isso produz impactos profundos não só na aprendizagem escolar, mas no desenvolvimento pessoal e social dessas crianças.
O Brasil precisa ter a mesma persistência, determinação e obsessão que teve o soldado Doss em salvar todos os feridos na sangrenta Batalha de Okinawa: não desistir de nenhuma criança, de nenhum jovem deste país, para que todos tenham não só acesso à escola, mas aprendam e concluam a Educação Básica na idade certa. De cada 100 crianças que começam o 1º ano do Ensino Fundamental, somente metade chega ao último ano do Ensino Médio, e boa parte com grandes déficits de aprendizagem. De cada 100 que chegam ao final do percurso, somente 9 aprenderam o que seria esperado em matemática, e 29 em língua portuguesa.
O filme Até o último homem trouxe-me a luz necessária para compreender de modo cabal a permanente inquietação do professor Chico Soares – de que a escola deve ser para todos. Não basta ter Ideb alto se não incluir todos!
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